quinta-feira, 10 de maio de 2007

O SACRILÉGIO DOS POMBOS DE SAMARIA




Barros Pinho



Primeiro, matam-se os pombos, depois os homens.

Os pombos não param de voar e o padre Demonino não pára de sofrer. Só uma beata que, costumeiramente, ia à pequena igreja de Samaria observava a aflição dele. O restante dos fiéis se ocupava em seus pequenos afazeres numa indiferença que atormentava mais ainda o senhor vigário. A beata, sozinha, diante do oratório, pensava: um padre velho habituado com os bois e os chocalhos das ovelhas perdidas nas tardes quentes de verão não devia mais se espantar com as coisas da natureza. Será que o senhor vigário não tem mais os olhos abertos para o sol da manhã? Seus ouvidos não mais acompanham o alarido dos cachorros nos terreiros das casas da Vila de Samaria, onde o Padre Demonino afiança suas orações aos justos. Sobram dúvidas na cabeça de todos os cristãos que se afivelam com os bichos como se fosse um daqueles animais soltos por dentro da palmeirada de carnaúba e no branco limpo das capoeiras de algodão. O sacerdote é o representante de Deus na Terra. E o Padre Demonino agora só fala na ameaça dos pombos à sua casa de oração.

A igrejinha estava situada bem no centro da Vila de Samaria, antiga Nossa Senhora da Assunção, lugar onde a timidez dos homens simples destravava um pequeno comércio, mais para tanger o tempo dos bodegueiros no calendário do que mesmo vantagear suas vendas. Todos sem deixar de contar nenhum eram provenientes das fazendas que ficavam bem próximas da vila, ali depois de atravessar o rio Pajeú.

A maioria desses filhos de fazendeiros ou de netos mimados na fartura de muito leite tocava a vida na lentidão de quem parece não se afligir com as necessidades e os tormentos da alma sempre a exigir do cristão batizado providência de reza e sacrifícios acentuados no período da Quaresma. Na Paixão de Cristo, esses homens quase desocupados deixavam de beber sua cachaça abastecida pelos engenhos da serra, que entre uma e outra tachada de rapadura destilavam uma forte e boa aguardente adormecida em tonéis de carvalho. Um deles até tido como afoito por atitudes determinadas e corajosas diante dos obstáculos que às vezes surgiam na pacata Vila de Samaria, olhava para um lado e para o outro, não descuidando o olhar no rumo da casa do Padre Demonino e, rápido, se atrevia a colocar milho para os pombos lambendo as beiradas do sino da capela. Na precisão da verdade, o milho era jogado à luz do dia, na ausência do Padre Demonino, quase na porta de entrada da igreja. Os pombos ao pressentirem a chegada do seu Zebenfazejo, sempre no seu passo devagar, de quem não tem pressa de viver - porque viver para ele é uma aventura de paz no seu pequeno mundo - afoitos desciam.

Os pombos voavam em roda dos pés de Zebenfazejo para alcançar o milho por ele distribuído. Os voadores sabiam catar em contentamento de criança enchendo de asas o cimentado em frente da capela. Quem não fosse o padre Demonino, vendo aquela alegria toda dos pombos, só tinha razão para também se sentir alegre com o voar/voar das aves da paz. Neste caso, o Padre Demonino pensava inteiramente desigual de seus fiéis. Ao celebrar a missa do domingo ele esquecia totalmente o Evangelho. Nem lia os salmos. Sisudo, blasfemava num descontrole de fazer dó a qualquer cristão que nunca houvesse visto a alegria dos pombos a recolher o milho do seu Zebenfazejo, dono de um comerciozinho de nada na esquina do mercado. Nesse seu destrambelhamento o Padre Demonino ia muito além dos limites permitidos pela pequena tribuna sacra de sua capela, construída em cedro pelas mãos caprichosamente habilidosas do mestre Janjão do Sapucaí, bom também no ofício de cortar santo na madeira. O padre, no seu desvario, repetia ameaças aos borbotões; a última delas era que a questão dos pombos seria resolvida na mesa do delegado, à sombra da palmatória. Mesmo diante do Padre Demonino o seu Zebenfazejo não perdia a calma. A calma de quem desenvolvia uma boa ação. Não se impacientava também por ser ele da intimidade do delegado, com quem as horas tantas do dia puxava umas lapadas de cana pura para preencher o tédio da delegacia, que era depósito apenas de um preso, o temido “Língua de Faca”, que, numa descontrolada crise de ciúme, matara a Maria Belinha com nada menos de vinte e uma facadas, lá nela, na extrema do umbigo descendo pras partes mais íntimas do seu corpo. Assim, o seu Benfazejo continuava no seu serviço de paz, alimentando os pombos com milho. Eles se multiplicavam e voavam sem parar, entrando agora não só pela porta da capela, mas também pela torrinha meio escondida. Os bichos, no dizer do Padre Demonino, tomavam conta da Vila de Samaria. E segundo o vigário, esses voadores transmitiam uma doença que punha em perigo toda a gente do povoado. E o padre, na rua ou na capela, não se cansava de repetir numa insistência furiosa: será que o delegado não tem olhos para ver tanto desmantelo desses pombos voando rentes à sua barba? O delegado, no seu faz-de-conta de autoridade, deixava os pombos voar no céu azul das tardes preguiçosas da Vila de Samaria.

A Vila, de tão pacata e de tão poucas aspirações de progresso, ia se habituando com a conivência do delegado e os sermões do Padre Demonino, não por desobediência, mas por preguiça de quebrar a rotina de sua vida. A inquietação de seu espírito já elaborava um novo plano – o de matança coletiva dos pombos que prejudicavam a igreja e ameaçavam a Vila.

O vigário consolidou a idéia de exterminar aquelas aves no momento dos festejos de São José.

Dom Beneto foi à Vila de Samaria para a abertura das novenas do santo padroeiro, paramentado, tendo o solidéu roxo na cabeça e as meias do mesmo tom para o assombro nos olhos de todos os viventes do lugar.

As beatas, as Filhas de Maria e por fim, as moças mal-faladas por freqüentarem as moitas com um e com outro, todas estavam contritas como se já estivessem na porta do céu em animada conversa com São Pedro. Olhavam o bispo arrependidas e admiradas de seu embelezamento de Rei da Igreja sem a mácula do pecado.

O destino não fecha a porta nem para os santos. Na hora mesma em que o senhor bispo Dom Beneto desceu do jipe, todo enfeitado, passando pelas filas de colegiais organizadas pela professora tia Mundoquinha, os pombos também se sentiram convidados para a festa de São José e entraram em cena com o desembaraço costumeiro de suas asas. Verificou-se na ocasião uma alegria muito grande nos olhos dos meninos e um espanto igual estampado no rosto dos adultos, tudo isto, estimulado pelo entusiasmo do Padre Demonino que não se afastava da preocupação com os pombos. Pois não é que um dos voadores mais esperto voou em direção ao bispo, acompanhado por outro que vinha logo em seu encalço, quase pousando no ombro do senhor bispo e não se contendo deixou escapulir excrementos, borrando assim os paramentos de Dom Beneto. Foi um horror! O Padre Demonino tentava, em vão, recompor a festa. Uns riam, outros choravam. Até o sol mergulhou nas nuvens.

As beatas mais diligentes reclamavam por uma bacia de água quente para a limpeza das vestimentas de Dom Beneto, que firme segurava o seu constrangimento. Para não desapontar ainda mais as suas ovelhas o Padre Demonino esperneava aos berros: sacrilégio! Sacrilégio! Vamos envenenar os pombos! Vamos matar os pombos!

No centro do tumulto, na explosão da cólera, o destemido vigário desafiava o delegado que bebia distante de tudo num boteco do fim da rua com seu Zebenfazejo, à espera de um violão para comemorar a chegada do bispo em Samaria.

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