quinta-feira, 10 de maio de 2007

Crítica de Dias da Silva sobre "A Viúva do Vestido Encarnado"

A VIÚVA DO VESTIDO ENCARNADO

Dias da Silva



A Editora Record, em bom momento oportuno, traz ao público - é um livro de leitura indispensável - de Barros Pinho, dezesseis contos encimados do título A Viúva do Vestido Encarnado, que é o último texto que dá nome ao livro. São cento e vinte páginas de histórias - delas curtas e rápidas; delas mais alongadas, todas soltas e dinâmicas, que se lêem de uma assentada, pois o sabor da leitura e a curiosidade crescendo não deixam, de verdade, o leitor parar no meio do caminho para continuar no dia seguinte. São histórias cujos enredos se vão contando, espontaneamente, a quem não teve ainda como folheá-las só. Não há como guardá-las só pra gente. O leitor realmente, não consegue esconder o entusiasmo. Pela maneira de descrever a realidade corriqueira. Barros Pinho nisso se faz um mestre.
Os personagens _ Seu Eugênio, Zeferino, Zeca do Bonário, Mundica, Juca Rouxinol, Josefa da neblina, o Cego Beluz, Zelino da Serra, Salomão, a Viúva do Vestido Encarnado _ todos parece que têm vida, que se bolem. Que se fotografam. Se revelando. Conversando. É verdade: são pessoas vivas, presentes, de tão concebidas e fotografadas por palavras, com tal espontaneidade e originalidade.
" O conto é uma peça una. Esse processo que se usa ainda de abrir espaços como divisão de capítulos, é para novela e romance. O Conto é um tiro só: vupt, e pronto. Tudo o mais vai no implícito".
Outro teórico vem e diz: " o conto tem na brevidade a característica principal, decorrente da concentração dos recursos expressivos, em torno de um único efeito." E compreensões outras do conto. Ângulos mais sob o que é visto o conto. E a polêmica não para por aí. Sem qualquer conclusão. Para alguns críticos e teóricos, se o texto não se enquadra nessas medidas criadas em gabinete e laboratório de língua, se se quebram essas amarras, não se tem o conto. Ora não é. O que acontece é que, em face de tanta teorização, acaba-se por embrulhar o leitor. Barros não estruturou os 16 contos pensando nesta ou naquela teoria.
Estou que o certo mesmo é escrever o texto sem qualquer assédio de teorias que só emperram. Que só atrapalham. Que só complicam. Há teorias ( e críticas por aí em fora) que só embaralham o leitor, levando-o para longe do livro.
O autor de Planisfério escreveu A Viúva do Vestido Encarnado bem livre e espontaneamente. Bem longe de cânones e regras restritivas. Sem definições de contos por partes. Não escreveu dezesseis contos para teóricos ou para alimentar polêmica acerca de conto. Escreveu histórias para o povo ler. Ler e guardar o retrato dos personagens. Conto é isto _ longo, breve, de único efeito _ conto é o que se lê e logo se vai contando a outrem.
Barros Pinho desdiz a linguagem popular, sertaneja, para dizer de novo a mesma coisa de outra maneira também natural e espontânea. " A gente corre a vista nele e enxerga respeito da cabeça aos pés" _ para dizer que Seu Eugênio é um homem sério e honesto. (Hoje se cansa a vista para se encontrar um homem honesto...); "... dei de botar pernas no mundo" _ para dizer que Zeca é um andarilho; "... deixou abrir vereda no corpo, sem dar sabença das oiças do noivo bom de chegar" _ para dizer que Maria não era mais virgem e o noivo não sabia; "... Mexer sem licença de padre no altar..." _ para dizer o mesmo que fazer o mal à moça antes do casamento. E assim vai por todo o livro. Ao longo dos dezesseis contos. É assim a linguagem de Barros Pinho: curiosa, atraente, original, muito pessoal. E nisto é que consiste a originalidade: dizer o já dito de outra maneira. Saber reescrever coisas já escritas. Por que não há nada de novo no debaixo do sol. Originalidade não é criar _ que pé tirar do nada _ senão recriar. Criar de outra forma do já criado.
Pois é: o autor de Circo Encarnado recria, reinventa a linguagem popular do homem rude do campo, com formas pessoais de dizer, nas comparações com o aproveitamento de elementos da natureza: "... parecia ave de pena em poleiro limpo"; " A terra é uma asa de anum escuro voando pro céu"; "...ligeiros como relâmpago". Muito bem. As páginas de A Viúva do Vestido Encarnado estão recheadas de expressões assim. Outro recurso expressivo de Barros Pinho é a recorrência constante à substantivação de formas verbais, de advérbios e de nomes, carregando assim a linguagem de força e contundência.
Entretanto o que chama a atenção do leitor é que Barros Pinho consegue fazer o milagre da convivência do popular e vulgar com a correção e o padrão, sem qualquer percepção de algo trabalhado intencionalmente. A frase lhe cai da pena como da língua do homem rústico do campo, de tão dinâmica e natural. É o casamento espontâneo do popular com o correto sem artificialismo. Até na estrutura do diálogo tem originalidade. Às vezes mesmo sem o sinal convencional do diálogo direto (...), o leitor percebe a conversa entre personagens.
Não consigo resistir à transcrição das primeiras frases de alguns contos: são um convite irresistível à leitura do texto inteiro. Do primeiro conto: " A palmeira do buriti alonga-se num verde justaposto ao vento", do terceiro: " As manhãs trazem o sol no ventre"; em outro momento desse conto disse: " os dias eram uma gulodice comendo o tempo".
O estilo em A Viúva do Vestido Encarnado é resultante, de fato, do temperamento intelectual e moral do modo de ver e compreender, o que tem o autor, realmente, de mais íntimo e individual. É Barros Pinho se recordando, no impulso da melhor saudade, como em toda sua obra. A linguagem é curiosa. Leve. De frase curta. Que parece que tem música. De palavra usual revitalizada. De páginas recheadas de frases nominais carregadas de expressividade e contundência.
Barros Pinho é um intelectual que não vira as costas à democratização da linguagem e à popularização do estilo _ sem perder a correção _ preferindo dirigir-se ao povo a escrever para um grupo reduzido que escolhe falar somente com colegas deixando de fora a população.
A leitura de A Viúva do Vestido Encarnado não cansa, suscita entusiasmo e aguça a curiosidade do leitor. Não deixe de levar essa indumentária para sua estante: além de feita pra você, está na moda...

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