No Ceará planta-se no sonho e colhe-se na esperança
sexta-feira, 25 de maio de 2007
segunda-feira, 21 de maio de 2007
“ O homem precisa de lucidez para garantir a fantasia do sonho do poeta. Ninguém é poeta sem o sonho e sem o mistério”.
Barros Pinho
— “Carta do Pássaro” traz poemas autobiográficos?
Barros Pinho - Toda a literatura traz a marca da vida do autor, sendo um pouco autobiográfica. “A Carta do Pássaro” é a realidade e a fantasia de minhas vivências na infância, no engenho do meu avô à beira do rio Parnaíba. Rio que leva e lava a minha solidão.
— Parece-me que o senhor é romântico e também religioso. Estes dois vértices são constantes na sua poesia?Barros Pinho - Sou romântico pelo avesso. Os pés no chão é a vida, a realidade. Não se pode fugir da vida, da realidade. O dedo no céu é o sonho, o encanto, a aventura de viver. O sublime presidindo o destino do poeta.
— O senhor passou parte da infância na ribeira do Parnaíba, engenho do seu avô. Que lembranças mais fortes o senhor trouxe para “Carta do Pássaro”?
Barros Pinho - A “Carta do Pássaro” é marcada pelo azul, pelo vermelho e pela terra. O rio Parnaíba, a infância, o cordel, o engenho da cana de açúcar, as chapadas, as matas do Guabiraba e das morenas cheirando a leite. A mulher e o rio estão dentro do texto como se estivessem saindo da minha alma. Completam-se no ritmo e na palavra. Não há limites entre o sonho, fantasia e realidade. Somente o rio que leva e lava a minha solidão.
sexta-feira, 18 de maio de 2007
O SALMO DOS CAMINHOS
(poema inédito para o "Livro dos Rios/
Conversão das Águas)
nos meus pés carrego muitos caminhos
o dos ventos no castigo das pedras
nos meus ouvidos toca harpa de asas
borboletas na estação das chuvas
nas mãos aspejo a súplica do inverno
riachos arrastam folhas na minha cabeça aflita
os rios contornam a guerra
na paz úmida
da palavra semântica
da espera onde arrecado
volumes de sombras
tecendo abismos no mistério
no justo o triste consome a traição dos ímpios
no perdão sálmico das árvores ao entregar-se ao Sol
vive-se a plenitude na estranha indiferença da inveja
ao inimigos do sonho basta o tormento da insônia
aos peixes na água rasa a solicitude dos santos
nos mortos os pássaros acendem o lumiar da aurora
(poema inédito para o "Livro dos Rios/
Conversão das Águas)
nos meus pés carrego muitos caminhos
o dos ventos no castigo das pedras
nos meus ouvidos toca harpa de asas
borboletas na estação das chuvas
nas mãos aspejo a súplica do inverno
riachos arrastam folhas na minha cabeça aflita
os rios contornam a guerra
na paz úmida
da palavra semântica
da espera onde arrecado
volumes de sombras
tecendo abismos no mistério
no justo o triste consome a traição dos ímpios
no perdão sálmico das árvores ao entregar-se ao Sol
vive-se a plenitude na estranha indiferença da inveja
ao inimigos do sonho basta o tormento da insônia
aos peixes na água rasa a solicitude dos santos
nos mortos os pássaros acendem o lumiar da aurora
quarta-feira, 16 de maio de 2007
TERRA DAS ÁGUAS
terra molhada pelo parnaíba
terra de serrotes ondulados
de longes planícies preguiçosas
que se abrem para o encontro
do conquistador Jorge velho
com o nativo vaqueiro feito na terra
passo do gado nas paragens do sem-fim
terra rude no desejo quase obsessão
do cansado garimpeiro de encontrar
as pedras que não perdeu nas águas
do rio que não conhecia
terra de imensos canaviais
verde verde pássaro da esperança
de longos bananais perdidos nos aluviões
onde meus avós colhem arroz ao sol da manhã
no amor bem próximo da saudade
terra de onça pintada espreitadeira
de paca tatu cotia veado na aventura do caçador
das morenas cheirando a leite no botão dos peitos
nos sambas intermináveis dentro do luar
terra das águas barrentas do parnaíba
teu homem tem na natureza o destino das canoas
sobe e desce o rio a remar a remar até nunca parar
só as estrelas nos atalhos das veredas do céu
terra molhada pelo parnaíba
terra de serrotes ondulados
de longes planícies preguiçosas
que se abrem para o encontro
do conquistador Jorge velho
com o nativo vaqueiro feito na terra
passo do gado nas paragens do sem-fim
terra rude no desejo quase obsessão
do cansado garimpeiro de encontrar
as pedras que não perdeu nas águas
do rio que não conhecia
terra de imensos canaviais
verde verde pássaro da esperança
de longos bananais perdidos nos aluviões
onde meus avós colhem arroz ao sol da manhã
no amor bem próximo da saudade
terra de onça pintada espreitadeira
de paca tatu cotia veado na aventura do caçador
das morenas cheirando a leite no botão dos peitos
nos sambas intermináveis dentro do luar
terra das águas barrentas do parnaíba
teu homem tem na natureza o destino das canoas
sobe e desce o rio a remar a remar até nunca parar
só as estrelas nos atalhos das veredas do céu
quinta-feira, 10 de maio de 2007
CRÍTICA ao livro "CARTA DO PÁSSARO"
POESIA E TRANSCENDÊNCIA
Pedro Paulo Montenegro
A leitura de Carta do Pássaro, de Barros Pinho, desde o primeiro momento, nos obriga a uma séria reflexão sobre a natureza e o valor da Poesia.
Acode-nos de logo a assertiva de Heidgger comentando Hölderlin: “A Poesia é a fundação do ser pela palavra.” O escritor tem que evocar no leitor, imagens e sentimentos e a poesia se centra na associação de sons, imagens e idéias.
Se todos os homens não são poetas, têm, pelo menos, atitudes poéticas de expectativas ante poemas lidos ou ouvidos e, na vida diária, criam associações mais ou menos evidentes, ou à base de sons repetidos ou de alguma cadência rítmica. Outras vezes relacionam imagens mais virtuosas ou mais perversas. Em todos os casos trabalham a linguagem, matéria prima da literatura em geral e da poesia em particular.
Cada verso que o poeta escreve aguça a imaginação emotiva e o leva a novas descobertas que, por sua vez, a outras conduz. São as palavras mesmas do poema que operando sobre o autor, originam a cadeia expressiva.
Como afirma Carlos Bousoño, em sua Teoria de la Expresión Poética, “Poesia é percepção de emoções, evocação serena de impressões e sensações, isto é, uma contemplação capaz de produzir sentimentos estéticos de prazer e alegria”. E insiste: “há uma infinita distância entre contemplar e viver, entre poesia e realidade, entre linguagem e realidade". E mais : “O que se comunica não é um conteúdo anímico real, mas imaginário”.
Assim chega à sua definição: “poesia é a comunicação de um conteúdo anímico, em seu tríplice aspecto conceitual, sensorial e afetivo ou volitivo”.
Mas trata logo de esclarecer Bousoño: “A comunicação do autor é imaginária, mas a do poema é real, o que vale dizer que um personagem fictício nos transmite a representação que no poema está depositada.”
A angústia, a paisagem, as coisas e, eventualmente o homem e o mundo existem em função de serem as raízes da produção poética de Barros Pinho. Sua poesia se enquadra, pelo lirismo e técnica, na poética moderna. Seu lirismo é sempre participante sem envolvimento político-ideológico, pairando no universal humano.
Decorrência dessa natureza lírica, nesta Carta do Pássaro, é a perfeita contextura entre significante e significado na formação da palavra poeticamente exata, na construção de beleza da linguagem, bela por essência porque confessionalmente fruto de um temperamento e uma visão-do-mundo que são estilo.
Exatamente isso. Os poetas se apoiam numa linguagem mais precisa e radical do que a fala, uma linguagem literária que vem a ser o estilo como visão-do-mundo. Aí surgem imagens, cores, rítmos, visões que se concretizam em poemas.
O poeta é um mago e a poesia é um tato espiritual para as coisas transcendentes, presentes nas coisas triviais que todo mundo vê, mas só em sua trivialidade. Isso porque habituados a se moverem em regiões misteriosas, obscuras, submarinas e subterrâneas, os poetas guardam o passo leve, o gesto fino, o discernimento delicado, que lhes proporcionam evitar deslizes e quedas que políticos, pensadores e até filósofos não conseguem evitar. Em muitas coisas os poetas – os legítimos – vêem mais fundo que os reformadores sociais e os psicólogos construtores de sistemas. Entre elas, o amor, a angústia, o desespero, a saudade, as lágrimas...
Em Carta do Pássaro percebemos nítidos alguns temas dominantes e recorrentes como amor e paixão, tempo e solidão, recordação e saudade, natureza e sexualidade, mística e mistério. Sobre todas elas perpassam forte sentimento de amor e verdadeiro encantamento com suas terras piauienses e seu grande Parnaíba. Amor e encantamento transformados em mística e mistério, por conseguinte numa religião da terra e da natureza.
As tradicionais figuras da Retórica tradicional: de supressão, de repetição, de concordância e colocação, as próprias figuras de pensamento, como prosopopéia, hipérbole, antítese e comparação, embora ocasionalmente encontradas nestes poemas de Barros Pinho, não são suficientes para uma análise mais minunciosa e percuciente da sua construção. Temos que recorrer a figuras daquilo que Carlos Bousoño chama “Irracionalidade da Poesia Contemporânea”: Sinestesia, Imagens Visionárias, Visão, Símbolo, Superposição (temporal, espacial, situacional, significacioonal), para sentirmos toda a força e eficácia de sua mensagem.
Dentro ainda da nota de mística, mistério e religião já aludida, está a influência da leitura bíblica de salmos e parábolas evangélicas, levando-nos tudo a uma conclusão valorativa: - a grande força poética de Barros Pinho é proveniente de sua linguagem, matéria prima, é claro, de toda arte verbal, mas quando trabalhada à exaustão pelo artista, como é o seu caso, tem a magia da transformação, da sugerência e da atração.
A leitura de Carta do Pássaro, de Barros Pinho, desde o primeiro momento, nos obriga a uma séria reflexão sobre a natureza e o valor da Poesia.
Acode-nos de logo a assertiva de Heidgger comentando Hölderlin: “A Poesia é a fundação do ser pela palavra.” O escritor tem que evocar no leitor, imagens e sentimentos e a poesia se centra na associação de sons, imagens e idéias.
Se todos os homens não são poetas, têm, pelo menos, atitudes poéticas de expectativas ante poemas lidos ou ouvidos e, na vida diária, criam associações mais ou menos evidentes, ou à base de sons repetidos ou de alguma cadência rítmica. Outras vezes relacionam imagens mais virtuosas ou mais perversas. Em todos os casos trabalham a linguagem, matéria prima da literatura em geral e da poesia em particular.
Cada verso que o poeta escreve aguça a imaginação emotiva e o leva a novas descobertas que, por sua vez, a outras conduz. São as palavras mesmas do poema que operando sobre o autor, originam a cadeia expressiva.
Como afirma Carlos Bousoño, em sua Teoria de la Expresión Poética, “Poesia é percepção de emoções, evocação serena de impressões e sensações, isto é, uma contemplação capaz de produzir sentimentos estéticos de prazer e alegria”. E insiste: “há uma infinita distância entre contemplar e viver, entre poesia e realidade, entre linguagem e realidade". E mais : “O que se comunica não é um conteúdo anímico real, mas imaginário”.
Assim chega à sua definição: “poesia é a comunicação de um conteúdo anímico, em seu tríplice aspecto conceitual, sensorial e afetivo ou volitivo”.
Mas trata logo de esclarecer Bousoño: “A comunicação do autor é imaginária, mas a do poema é real, o que vale dizer que um personagem fictício nos transmite a representação que no poema está depositada.”
A angústia, a paisagem, as coisas e, eventualmente o homem e o mundo existem em função de serem as raízes da produção poética de Barros Pinho. Sua poesia se enquadra, pelo lirismo e técnica, na poética moderna. Seu lirismo é sempre participante sem envolvimento político-ideológico, pairando no universal humano.
Decorrência dessa natureza lírica, nesta Carta do Pássaro, é a perfeita contextura entre significante e significado na formação da palavra poeticamente exata, na construção de beleza da linguagem, bela por essência porque confessionalmente fruto de um temperamento e uma visão-do-mundo que são estilo.
Exatamente isso. Os poetas se apoiam numa linguagem mais precisa e radical do que a fala, uma linguagem literária que vem a ser o estilo como visão-do-mundo. Aí surgem imagens, cores, rítmos, visões que se concretizam em poemas.
O poeta é um mago e a poesia é um tato espiritual para as coisas transcendentes, presentes nas coisas triviais que todo mundo vê, mas só em sua trivialidade. Isso porque habituados a se moverem em regiões misteriosas, obscuras, submarinas e subterrâneas, os poetas guardam o passo leve, o gesto fino, o discernimento delicado, que lhes proporcionam evitar deslizes e quedas que políticos, pensadores e até filósofos não conseguem evitar. Em muitas coisas os poetas – os legítimos – vêem mais fundo que os reformadores sociais e os psicólogos construtores de sistemas. Entre elas, o amor, a angústia, o desespero, a saudade, as lágrimas...
Em Carta do Pássaro percebemos nítidos alguns temas dominantes e recorrentes como amor e paixão, tempo e solidão, recordação e saudade, natureza e sexualidade, mística e mistério. Sobre todas elas perpassam forte sentimento de amor e verdadeiro encantamento com suas terras piauienses e seu grande Parnaíba. Amor e encantamento transformados em mística e mistério, por conseguinte numa religião da terra e da natureza.
As tradicionais figuras da Retórica tradicional: de supressão, de repetição, de concordância e colocação, as próprias figuras de pensamento, como prosopopéia, hipérbole, antítese e comparação, embora ocasionalmente encontradas nestes poemas de Barros Pinho, não são suficientes para uma análise mais minunciosa e percuciente da sua construção. Temos que recorrer a figuras daquilo que Carlos Bousoño chama “Irracionalidade da Poesia Contemporânea”: Sinestesia, Imagens Visionárias, Visão, Símbolo, Superposição (temporal, espacial, situacional, significacioonal), para sentirmos toda a força e eficácia de sua mensagem.
Dentro ainda da nota de mística, mistério e religião já aludida, está a influência da leitura bíblica de salmos e parábolas evangélicas, levando-nos tudo a uma conclusão valorativa: - a grande força poética de Barros Pinho é proveniente de sua linguagem, matéria prima, é claro, de toda arte verbal, mas quando trabalhada à exaustão pelo artista, como é o seu caso, tem a magia da transformação, da sugerência e da atração.
OS OITO PÁSSAROS DE TECO CURIÓ
Barros Pinho
O dono da fazenda Jaçanã, o verde mais gloriento daqueles brejos, tinha muito de agarrado com os animais e aves de sua terra. Nem pensar em mexer nos seus passarinhos que andavam soltos no ar pela grandolência do céu aberto. Mas o menino Teco Curió, esperto de fazer inveja, já crescidinho em tamanho, quando soltava a gaiola, logo pegava a arapuca. Menino danado, mas sabia viver na afeição de todos os vivos de Jaçanã.
Capitão Juriti se queixava do endemoniado a toda gente que chegava perto de seus ouvidos. Assanhava a história de que nunca se viu menino tão atravessado em travessura - só tendo mesmo parentesco com o capeta.
Teco Curió, o menino da gaiola, gostava de cantar e de assobiar feito canário no cocuruto das árvores ou na cabeceira dos riachos, até à nascente dos rios no arribado das serras.
O capitão Juriti, dono de tudo nos arredores de muitas léguas, não se cansava de ralhar:
―Teco Curió, deixa de armar armadilha de pegar pássaro em minhas terras.
A conversa se mastigava todo o tempo e o tempo todo nas oiças tampadas de Curió. E o menino arrumava mais ainda o seu ofício de assobiar, imitando a passarada que sobre ele volteava de asas abertas, no abanar de borboletas nas veredas pelo inverno. Antes mesmo do sol se debruçar sobre as arrojadas palmeiras de buriti ou nas linheiras de babaçu, o Curió, de gaiola na mão, já era encontrado pelos rendeiros nas levadas do canavial, desmudado em gato, na procura desconfiada, com o olhar comprido nos olhos dos paus, no avevecimento se o canário mais limpo de papo amarelo estava na disposição de ser apanhado de surpresa, ao cantar o canto mais bonito da mata.
Ao dormir, Teco sonhava armando a arapuca da manhã seguinte no descampado das matas, assobiando afiado, ouvido atento e o olhar de seta de serpente encantada no feitiço de índio.
O dono da fazenda Jaçanã, o verde mais gloriento daqueles brejos, tinha muito de agarrado com os animais e aves de sua terra. Nem pensar em mexer nos seus passarinhos que andavam soltos no ar pela grandolência do céu aberto. Mas o menino Teco Curió, esperto de fazer inveja, já crescidinho em tamanho, quando soltava a gaiola, logo pegava a arapuca. Menino danado, mas sabia viver na afeição de todos os vivos de Jaçanã.
Capitão Juriti se queixava do endemoniado a toda gente que chegava perto de seus ouvidos. Assanhava a história de que nunca se viu menino tão atravessado em travessura - só tendo mesmo parentesco com o capeta.
Teco Curió, o menino da gaiola, gostava de cantar e de assobiar feito canário no cocuruto das árvores ou na cabeceira dos riachos, até à nascente dos rios no arribado das serras.
O capitão Juriti, dono de tudo nos arredores de muitas léguas, não se cansava de ralhar:
―Teco Curió, deixa de armar armadilha de pegar pássaro em minhas terras.
A conversa se mastigava todo o tempo e o tempo todo nas oiças tampadas de Curió. E o menino arrumava mais ainda o seu ofício de assobiar, imitando a passarada que sobre ele volteava de asas abertas, no abanar de borboletas nas veredas pelo inverno. Antes mesmo do sol se debruçar sobre as arrojadas palmeiras de buriti ou nas linheiras de babaçu, o Curió, de gaiola na mão, já era encontrado pelos rendeiros nas levadas do canavial, desmudado em gato, na procura desconfiada, com o olhar comprido nos olhos dos paus, no avevecimento se o canário mais limpo de papo amarelo estava na disposição de ser apanhado de surpresa, ao cantar o canto mais bonito da mata.
Ao dormir, Teco sonhava armando a arapuca da manhã seguinte no descampado das matas, assobiando afiado, ouvido atento e o olhar de seta de serpente encantada no feitiço de índio.
O capitão Juriti costumava dizer que a fazenda era sua, sua de herança muito bem arranjada nos propósitos dessa vida. Ficava todo assanhado, se esmerava em zelo e paixão pelos limites de suas posses. De sua terra tinha ciúme até dos relâmpagos que passavam distante pras bandas das extensões leguentas do canavial do Coronel Chico Preto. Assim, o menino Teco Curió, filho do Xexéu, bom destilador de cachaça do engenho Jaçanã, não lhe saia da cabeça. Mesmo dormindo, o danado do menino entrava em seus sonhos, sonhos atormentados como se fossem de quem amarra o destino das almas deste mundo no mourão de sua própria vida.
Meu Deus, quando levanto a vista que esbarro no desmundado bonitamento de minha Jaçanã - brinquedo encantado de outros meninos, não endiabrados como o Curió, o que vejo, meio afogueado, quase dentro das cercas, em atalhos por cima de atalhos, é a gaiola do satanás pequeno se afastando na distância do meu olhar. Desabrigado da sorte, não sei mais o que dizer ou que fazer. Nem Xexéu, o pai desse pedaço de inferno em presença de gente, tem tenência pra dar jeito nele. Do Xexéu não posso me desservir. Ele é bom de trato e de serviço. Preciso dele a toda hora e a todo minuto da santa fé, na arte da serpentina no alambique. Mestre como ele não tem por esse chão coberto pelo lençol de água do riacho Gavião até a sua chegada na boca barrenta do rio Parnaíba.
Meu Deus! E os meus pássaros? O menino devastando tudo numa guerra... Hoje, do modo como as coisas estão, converso mais uma vez com Dona Pombinha, a mãe de Teco Curió, que é feiticeira contra minha vontade e no escondido do marido. Ela faz as coisas no escuro das matas fechadas com o adjutório de sua parceira Dona Jaó, apelidada de Bunda Alegria dos Homens, pelo avantajado de suas carnes, no avistamento de seu traseiro colado com manteiga da terra, para o vício do canavial. De repente, sobe uma fumaça por cima do arvoredo, quando menos se espera na encruzilhada do caminho, está um sapo cururu todo aberto, sem couro, endereçado a uma criatura qualquer do mundo, com umas velas apagadas pelo vento, sendo o vento um cristão da natureza.
O capitão Juriti bate à porta de Dona Pombinha:
- Dona Pombinha, com o respeito devido a uma senhora, a senhora que vive no trato de artes esquisitas e sabe das coisas até de fora das porteiras da minha terra, peço ajuda num desarrranjo com gente de sua família.
- Tá certo, capitão, seja feita a sua vontade.
Tudo ela despachava no fingimento fingidor de alegria.
- O capitão no nosso batente? Deve ser novidade de
festa afortunada da colheita do arroz!
- Não, Dona Pombinha, a festa agora está desarrumando o meu juízo, pois não é que o Curió virou asa de pássaro perseguidor, a voar entre a minha cabeça e os meus olhos sem parar na minha testa? É, Dona Pombinha, já fiz de tudo e o danado do menino não entende que nesta fazenda, neste engenho só o ar é livre porque não posso armazenar para vender num rateio polegada a polegada, por minuto ou no tempo que eu bem quiser, no aproveitar do ganho nos negócios da quitanda. Não suportando mais tanta carga no meu juízo e no meu sono, vim trazer para a senhora, sem mesmo o conhecer de Xexéu, uma proposta de acerto para harmonizar o verde, as águas e a passarinhada de Jaçanã.
―Diga capitão, no abrandado do seu merecimento, o que devo consertar no espírito de Teco? Ele prende as aves nas gaiolas, mas não quer matar os passarinhos, não. Só quer aprender com eles o jeito de voar. Capitão, já estudei a alma que anda no corpo de Curió. O menino tem inclinação de pássaro e se unhou com o vento. E o vento não tem limite no vão da terra. No meu desassossego de mãe, qual é a proposta do Capitão?
―Dona Pombinha, trata-se dum trato de mandar o Teco para a cidade. A muito custo posso pagar as despesas dele até chegar ao destino. A senhora, Dona Pombinha, como mãe vai ter orgulho de seu filho todo em branco como marinheiro, viajando em navio num mar de ondas mais altas do que esse pau-d'arco que a serventia é florar no floramento do campo.
―Capitão, como posso ter o orgulhamento de um filho no vivencer fora de suas folhas e de seus pássaros? O que vai fazer este menino na cidade? A cidade, capitão, engole os peixes miúdos como o rio cheio leva de eito a sua ribanceira.
―Vai pra marinha de Guerra do Brasil. Dona Pombinha, no mar, além dos peixes, têm uns pássaros que andam lado a lado do navio, parecendo um espelho onde se enxerga o tempo passado.
―Capitão, falo por mim e quase me atrevo a falar pelo Xexéu. Sendo seu desejado, não sei se é da vontade do menino Curió enfeitiçado pela sua gaiola, mas seja feita a graça de Deus, ou o capricho dos homens para Teco conhecer terras na aba do sol por aí a fora. Mas Teco, Capitão, já tá no rumo de saber segurar as rédeas de seu próprio cavalo. Não estando na desvalidez Capitão, assim é bom falar com ele.
E o Capitão no seu desmandamento desgovernado dos sem-limites, se dispôs a conversar com Curió.
O Capitão Juriti falava, Teco ouvia, ouvia com o olhar amarrado na copa das árvores à sua frente.
―Capitão, não tenho medo de trovão. O relâmpago boto debaixo do braço. Se me fujo do dono da Jaçanã, não é por atrevimento, é por ter nascido na mata. Me alembro de cantar como os pássaros e de rir com as folhas. Guardo no vento, as assas que o Capitão não tem merecimento de Deus para ver.
Teco, saindo de si, voltou-se para o Capitão:
- Aceito ir para a Marinha, no acertado de um trato derrradeiro de levar comigo a minha gaiola. Não vou Capitão, sem minha gaiola. Fique o senhor sabendo que só viajo para outras terras na companhia de meus pássaros de estimação. Para ser inteiro na verdade, Capitão, Curió não é mais menino; na minha cabeça se aninham oito pássaros voando e cantando numa algazarra de anjo, no rasgar o algodão do céu. E tem mais: na sua jaçanã todas as folhas já viraram asas – o esperado mistério da natureza. Só o homem anda com os pés de fogo, sem nunca se encostar em seu destino.
natal dos simples
barros pinho
canto o natal na reza
ao debulhar o milho
tirando da espiga
o sol de vida que se forma
na terra nas mãos dos simples
o menino de nazaré colhe
surpresas a convidar os deuses
no olimpo a ouvir ouvir
o anúncio do galo no azul
da última aurora disponível
o vento nas árvores dos passarinhos
sem nunca saber do triste
alegram o verde da natureza
a cinza do incenso das formigas
das abelhas acendendo o castiçal
do sonho dentro da noite
o labor extremo do vaga-lume no rastro
lúdico das estrelas no gosto
dos rios no andar dos peixes
submetidos ao exercício do homem
a procela do mar no barco sem
bússola imantando de luz
a procura da paz o tempo
nas bibliotecas livros fechados
com restos de saudades nas
léguas de pasto o gado a se
multiplicar comendo solidão
canto o natal nas capelas
retraídas sem o vitral das catedrais
pelos homens pelas mulheres ávidos
de amor traindo antes de amar
na tarde a completar a esperança
das ovelhas as menos bíblicas
ou nas fotografias impregnadas
do silêncio de ontem nas paredes
na missa da meia-noite era um
altar nos olhos tímidos
no susto da primeira namorada
natal deixa guardar em ti
apenas a dúvida da infância
canto o natal na reza
ao debulhar o milho
tirando da espiga
o sol de vida que se forma
na terra nas mãos dos simples
o menino de nazaré colhe
surpresas a convidar os deuses
no olimpo a ouvir ouvir
o anúncio do galo no azul
da última aurora disponível
o vento nas árvores dos passarinhos
sem nunca saber do triste
alegram o verde da natureza
a cinza do incenso das formigas
das abelhas acendendo o castiçal
do sonho dentro da noite
o labor extremo do vaga-lume no rastro
lúdico das estrelas no gosto
dos rios no andar dos peixes
submetidos ao exercício do homem
a procela do mar no barco sem
bússola imantando de luz
a procura da paz o tempo
nas bibliotecas livros fechados
com restos de saudades nas
léguas de pasto o gado a se
multiplicar comendo solidão
canto o natal nas capelas
retraídas sem o vitral das catedrais
pelos homens pelas mulheres ávidos
de amor traindo antes de amar
na tarde a completar a esperança
das ovelhas as menos bíblicas
ou nas fotografias impregnadas
do silêncio de ontem nas paredes
na missa da meia-noite era um
altar nos olhos tímidos
no susto da primeira namorada
natal deixa guardar em ti
apenas a dúvida da infância
O SACRILÉGIO DOS POMBOS DE SAMARIA
Barros Pinho
Primeiro, matam-se os pombos, depois os homens.
Os pombos não param de voar e o padre Demonino não pára de sofrer. Só uma beata que, costumeiramente, ia à pequena igreja de Samaria observava a aflição dele. O restante dos fiéis se ocupava em seus pequenos afazeres numa indiferença que atormentava mais ainda o senhor vigário. A beata, sozinha, diante do oratório, pensava: um padre velho habituado com os bois e os chocalhos das ovelhas perdidas nas tardes quentes de verão não devia mais se espantar com as coisas da natureza. Será que o senhor vigário não tem mais os olhos abertos para o sol da manhã? Seus ouvidos não mais acompanham o alarido dos cachorros nos terreiros das casas da Vila de Samaria, onde o Padre Demonino afiança suas orações aos justos. Sobram dúvidas na cabeça de todos os cristãos que se afivelam com os bichos como se fosse um daqueles animais soltos por dentro da palmeirada de carnaúba e no branco limpo das capoeiras de algodão. O sacerdote é o representante de Deus na Terra. E o Padre Demonino agora só fala na ameaça dos pombos à sua casa de oração.
A igrejinha estava situada bem no centro da Vila de Samaria, antiga Nossa Senhora da Assunção, lugar onde a timidez dos homens simples destravava um pequeno comércio, mais para tanger o tempo dos bodegueiros no calendário do que mesmo vantagear suas vendas. Todos sem deixar de contar nenhum eram provenientes das fazendas que ficavam bem próximas da vila, ali depois de atravessar o rio Pajeú.
A maioria desses filhos de fazendeiros ou de netos mimados na fartura de muito leite tocava a vida na lentidão de quem parece não se afligir com as necessidades e os tormentos da alma sempre a exigir do cristão batizado providência de reza e sacrifícios acentuados no período da Quaresma. Na Paixão de Cristo, esses homens quase desocupados deixavam de beber sua cachaça abastecida pelos engenhos da serra, que entre uma e outra tachada de rapadura destilavam uma forte e boa aguardente adormecida em tonéis de carvalho. Um deles até tido como afoito por atitudes determinadas e corajosas diante dos obstáculos que às vezes surgiam na pacata Vila de Samaria, olhava para um lado e para o outro, não descuidando o olhar no rumo da casa do Padre Demonino e, rápido, se atrevia a colocar milho para os pombos lambendo as beiradas do sino da capela. Na precisão da verdade, o milho era jogado à luz do dia, na ausência do Padre Demonino, quase na porta de entrada da igreja. Os pombos ao pressentirem a chegada do seu Zebenfazejo, sempre no seu passo devagar, de quem não tem pressa de viver - porque viver para ele é uma aventura de paz no seu pequeno mundo - afoitos desciam.
Os pombos voavam em roda dos pés de Zebenfazejo para alcançar o milho por ele distribuído. Os voadores sabiam catar em contentamento de criança enchendo de asas o cimentado em frente da capela. Quem não fosse o padre Demonino, vendo aquela alegria toda dos pombos, só tinha razão para também se sentir alegre com o voar/voar das aves da paz. Neste caso, o Padre Demonino pensava inteiramente desigual de seus fiéis. Ao celebrar a missa do domingo ele esquecia totalmente o Evangelho. Nem lia os salmos. Sisudo, blasfemava num descontrole de fazer dó a qualquer cristão que nunca houvesse visto a alegria dos pombos a recolher o milho do seu Zebenfazejo, dono de um comerciozinho de nada na esquina do mercado. Nesse seu destrambelhamento o Padre Demonino ia muito além dos limites permitidos pela pequena tribuna sacra de sua capela, construída em cedro pelas mãos caprichosamente habilidosas do mestre Janjão do Sapucaí, bom também no ofício de cortar santo na madeira. O padre, no seu desvario, repetia ameaças aos borbotões; a última delas era que a questão dos pombos seria resolvida na mesa do delegado, à sombra da palmatória. Mesmo diante do Padre Demonino o seu Zebenfazejo não perdia a calma. A calma de quem desenvolvia uma boa ação. Não se impacientava também por ser ele da intimidade do delegado, com quem as horas tantas do dia puxava umas lapadas de cana pura para preencher o tédio da delegacia, que era depósito apenas de um preso, o temido “Língua de Faca”, que, numa descontrolada crise de ciúme, matara a Maria Belinha com nada menos de vinte e uma facadas, lá nela, na extrema do umbigo descendo pras partes mais íntimas do seu corpo. Assim, o seu Benfazejo continuava no seu serviço de paz, alimentando os pombos com milho. Eles se multiplicavam e voavam sem parar, entrando agora não só pela porta da capela, mas também pela torrinha meio escondida. Os bichos, no dizer do Padre Demonino, tomavam conta da Vila de Samaria. E segundo o vigário, esses voadores transmitiam uma doença que punha em perigo toda a gente do povoado. E o padre, na rua ou na capela, não se cansava de repetir numa insistência furiosa: será que o delegado não tem olhos para ver tanto desmantelo desses pombos voando rentes à sua barba? O delegado, no seu faz-de-conta de autoridade, deixava os pombos voar no céu azul das tardes preguiçosas da Vila de Samaria.
A Vila, de tão pacata e de tão poucas aspirações de progresso, ia se habituando com a conivência do delegado e os sermões do Padre Demonino, não por desobediência, mas por preguiça de quebrar a rotina de sua vida. A inquietação de seu espírito já elaborava um novo plano – o de matança coletiva dos pombos que prejudicavam a igreja e ameaçavam a Vila.
O vigário consolidou a idéia de exterminar aquelas aves no momento dos festejos de São José.
Dom Beneto foi à Vila de Samaria para a abertura das novenas do santo padroeiro, paramentado, tendo o solidéu roxo na cabeça e as meias do mesmo tom para o assombro nos olhos de todos os viventes do lugar.
As beatas, as Filhas de Maria e por fim, as moças mal-faladas por freqüentarem as moitas com um e com outro, todas estavam contritas como se já estivessem na porta do céu em animada conversa com São Pedro. Olhavam o bispo arrependidas e admiradas de seu embelezamento de Rei da Igreja sem a mácula do pecado.
O destino não fecha a porta nem para os santos. Na hora mesma em que o senhor bispo Dom Beneto desceu do jipe, todo enfeitado, passando pelas filas de colegiais organizadas pela professora tia Mundoquinha, os pombos também se sentiram convidados para a festa de São José e entraram em cena com o desembaraço costumeiro de suas asas. Verificou-se na ocasião uma alegria muito grande nos olhos dos meninos e um espanto igual estampado no rosto dos adultos, tudo isto, estimulado pelo entusiasmo do Padre Demonino que não se afastava da preocupação com os pombos. Pois não é que um dos voadores mais esperto voou em direção ao bispo, acompanhado por outro que vinha logo em seu encalço, quase pousando no ombro do senhor bispo e não se contendo deixou escapulir excrementos, borrando assim os paramentos de Dom Beneto. Foi um horror! O Padre Demonino tentava, em vão, recompor a festa. Uns riam, outros choravam. Até o sol mergulhou nas nuvens.
As beatas mais diligentes reclamavam por uma bacia de água quente para a limpeza das vestimentas de Dom Beneto, que firme segurava o seu constrangimento. Para não desapontar ainda mais as suas ovelhas o Padre Demonino esperneava aos berros: sacrilégio! Sacrilégio! Vamos envenenar os pombos! Vamos matar os pombos!
No centro do tumulto, na explosão da cólera, o destemido vigário desafiava o delegado que bebia distante de tudo num boteco do fim da rua com seu Zebenfazejo, à espera de um violão para comemorar a chegada do bispo em Samaria.
Primeiro, matam-se os pombos, depois os homens.
Os pombos não param de voar e o padre Demonino não pára de sofrer. Só uma beata que, costumeiramente, ia à pequena igreja de Samaria observava a aflição dele. O restante dos fiéis se ocupava em seus pequenos afazeres numa indiferença que atormentava mais ainda o senhor vigário. A beata, sozinha, diante do oratório, pensava: um padre velho habituado com os bois e os chocalhos das ovelhas perdidas nas tardes quentes de verão não devia mais se espantar com as coisas da natureza. Será que o senhor vigário não tem mais os olhos abertos para o sol da manhã? Seus ouvidos não mais acompanham o alarido dos cachorros nos terreiros das casas da Vila de Samaria, onde o Padre Demonino afiança suas orações aos justos. Sobram dúvidas na cabeça de todos os cristãos que se afivelam com os bichos como se fosse um daqueles animais soltos por dentro da palmeirada de carnaúba e no branco limpo das capoeiras de algodão. O sacerdote é o representante de Deus na Terra. E o Padre Demonino agora só fala na ameaça dos pombos à sua casa de oração.
A igrejinha estava situada bem no centro da Vila de Samaria, antiga Nossa Senhora da Assunção, lugar onde a timidez dos homens simples destravava um pequeno comércio, mais para tanger o tempo dos bodegueiros no calendário do que mesmo vantagear suas vendas. Todos sem deixar de contar nenhum eram provenientes das fazendas que ficavam bem próximas da vila, ali depois de atravessar o rio Pajeú.
A maioria desses filhos de fazendeiros ou de netos mimados na fartura de muito leite tocava a vida na lentidão de quem parece não se afligir com as necessidades e os tormentos da alma sempre a exigir do cristão batizado providência de reza e sacrifícios acentuados no período da Quaresma. Na Paixão de Cristo, esses homens quase desocupados deixavam de beber sua cachaça abastecida pelos engenhos da serra, que entre uma e outra tachada de rapadura destilavam uma forte e boa aguardente adormecida em tonéis de carvalho. Um deles até tido como afoito por atitudes determinadas e corajosas diante dos obstáculos que às vezes surgiam na pacata Vila de Samaria, olhava para um lado e para o outro, não descuidando o olhar no rumo da casa do Padre Demonino e, rápido, se atrevia a colocar milho para os pombos lambendo as beiradas do sino da capela. Na precisão da verdade, o milho era jogado à luz do dia, na ausência do Padre Demonino, quase na porta de entrada da igreja. Os pombos ao pressentirem a chegada do seu Zebenfazejo, sempre no seu passo devagar, de quem não tem pressa de viver - porque viver para ele é uma aventura de paz no seu pequeno mundo - afoitos desciam.
Os pombos voavam em roda dos pés de Zebenfazejo para alcançar o milho por ele distribuído. Os voadores sabiam catar em contentamento de criança enchendo de asas o cimentado em frente da capela. Quem não fosse o padre Demonino, vendo aquela alegria toda dos pombos, só tinha razão para também se sentir alegre com o voar/voar das aves da paz. Neste caso, o Padre Demonino pensava inteiramente desigual de seus fiéis. Ao celebrar a missa do domingo ele esquecia totalmente o Evangelho. Nem lia os salmos. Sisudo, blasfemava num descontrole de fazer dó a qualquer cristão que nunca houvesse visto a alegria dos pombos a recolher o milho do seu Zebenfazejo, dono de um comerciozinho de nada na esquina do mercado. Nesse seu destrambelhamento o Padre Demonino ia muito além dos limites permitidos pela pequena tribuna sacra de sua capela, construída em cedro pelas mãos caprichosamente habilidosas do mestre Janjão do Sapucaí, bom também no ofício de cortar santo na madeira. O padre, no seu desvario, repetia ameaças aos borbotões; a última delas era que a questão dos pombos seria resolvida na mesa do delegado, à sombra da palmatória. Mesmo diante do Padre Demonino o seu Zebenfazejo não perdia a calma. A calma de quem desenvolvia uma boa ação. Não se impacientava também por ser ele da intimidade do delegado, com quem as horas tantas do dia puxava umas lapadas de cana pura para preencher o tédio da delegacia, que era depósito apenas de um preso, o temido “Língua de Faca”, que, numa descontrolada crise de ciúme, matara a Maria Belinha com nada menos de vinte e uma facadas, lá nela, na extrema do umbigo descendo pras partes mais íntimas do seu corpo. Assim, o seu Benfazejo continuava no seu serviço de paz, alimentando os pombos com milho. Eles se multiplicavam e voavam sem parar, entrando agora não só pela porta da capela, mas também pela torrinha meio escondida. Os bichos, no dizer do Padre Demonino, tomavam conta da Vila de Samaria. E segundo o vigário, esses voadores transmitiam uma doença que punha em perigo toda a gente do povoado. E o padre, na rua ou na capela, não se cansava de repetir numa insistência furiosa: será que o delegado não tem olhos para ver tanto desmantelo desses pombos voando rentes à sua barba? O delegado, no seu faz-de-conta de autoridade, deixava os pombos voar no céu azul das tardes preguiçosas da Vila de Samaria.
A Vila, de tão pacata e de tão poucas aspirações de progresso, ia se habituando com a conivência do delegado e os sermões do Padre Demonino, não por desobediência, mas por preguiça de quebrar a rotina de sua vida. A inquietação de seu espírito já elaborava um novo plano – o de matança coletiva dos pombos que prejudicavam a igreja e ameaçavam a Vila.
O vigário consolidou a idéia de exterminar aquelas aves no momento dos festejos de São José.
Dom Beneto foi à Vila de Samaria para a abertura das novenas do santo padroeiro, paramentado, tendo o solidéu roxo na cabeça e as meias do mesmo tom para o assombro nos olhos de todos os viventes do lugar.
As beatas, as Filhas de Maria e por fim, as moças mal-faladas por freqüentarem as moitas com um e com outro, todas estavam contritas como se já estivessem na porta do céu em animada conversa com São Pedro. Olhavam o bispo arrependidas e admiradas de seu embelezamento de Rei da Igreja sem a mácula do pecado.
O destino não fecha a porta nem para os santos. Na hora mesma em que o senhor bispo Dom Beneto desceu do jipe, todo enfeitado, passando pelas filas de colegiais organizadas pela professora tia Mundoquinha, os pombos também se sentiram convidados para a festa de São José e entraram em cena com o desembaraço costumeiro de suas asas. Verificou-se na ocasião uma alegria muito grande nos olhos dos meninos e um espanto igual estampado no rosto dos adultos, tudo isto, estimulado pelo entusiasmo do Padre Demonino que não se afastava da preocupação com os pombos. Pois não é que um dos voadores mais esperto voou em direção ao bispo, acompanhado por outro que vinha logo em seu encalço, quase pousando no ombro do senhor bispo e não se contendo deixou escapulir excrementos, borrando assim os paramentos de Dom Beneto. Foi um horror! O Padre Demonino tentava, em vão, recompor a festa. Uns riam, outros choravam. Até o sol mergulhou nas nuvens.
As beatas mais diligentes reclamavam por uma bacia de água quente para a limpeza das vestimentas de Dom Beneto, que firme segurava o seu constrangimento. Para não desapontar ainda mais as suas ovelhas o Padre Demonino esperneava aos berros: sacrilégio! Sacrilégio! Vamos envenenar os pombos! Vamos matar os pombos!
No centro do tumulto, na explosão da cólera, o destemido vigário desafiava o delegado que bebia distante de tudo num boteco do fim da rua com seu Zebenfazejo, à espera de um violão para comemorar a chegada do bispo em Samaria.
José Maria Barros de Pinho (Barros Pinho), nasceu em Teresina-PI em 25 de maio.
Desde o final da década de 50 reside em Fortaleza. Bacharelou-se em Administração de Empresas. Elegeu-se vereador e posteriormente, deputado estadual e Prefeito de Fortaleza. Secretário de Cultura do Estado, no Governo de Tasso Jereissati e posteriormente, Presidente do Instituto de Previdência do Município de Fortaleza. Anos mais tarde (1999), presidente da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza. Atualmente, é Presidente da Fundação de Esporte, Cultura e Turismo de Maracanaú. Na condição de educador, fundou o Colégio Oliveira Paiva. No campo literário, publicou os livros de poesias: Planisfério – Imprensa Universitária – 1969; Natal de Barro Lunar e Quatro Figuras no Céu-Edições Projeto– 1970; Circo Encantado – Gráfica Editorial Cearense; Natal do Castelo Azul – 1986; Pedras do Arco-íris ou a Invenção do Azul no Edital do Rio – 1998 e Planisfério – 2a. edição -2001; Mundica, Mulata do Cais (contos ) – Coleção Contar – 2002 – Teresina – PI; A Viúva do Vestido Encarnado (contos) 2002 – Editora Record. Carta do Pássaro (poesia)- Record.
Tem inéditos: ,Araçás do Mestre Rosa (contos),Os Corredores do Coronel Zeca Belarmino (novela).
Membro da Academia Cearense de Letras, (cadeira 14), Academia de Retórica (cadeira 28), sócio emérito da Academia de Letras Municipais (2002), acadêmico titular da cadeira nº 34 da Academia Fortalezense de Letras; membro da Academia de Ciências, Letras e Artes do Rio de Janeiro; integrante do Grupo SIN de Literatura; Integrante do Grupo Poesia Plural.
Integrante da Antologia de Contistas Novos do Brasil, organizada pelo escritor Moacir C. Lopes – Instituto Nacional do Livro.
Integrante da Antologia de Poesia do Século XX
Premiado no momento do Concurso de Poesia Norte e Nordeste, patrocinada pela Universidade Federal de Sergipe
Premiado por ocasião do Concurso Literário de Fortaleza, na categoria conto, promovido pela Fundação Cultural de Fortaleza (1997)
Menção Honrosa pelos relevantes serviços prestados como membro da Comissão Julgadora do Concurso Literário “Conhecendo o Parlamento”, promovido pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará.
Orador convidado pelo Instituto Antropológico e Geográfico do Ceará, por ocasião do Dia da Cultura e da Ciência –1999.
Desde o final da década de 50 reside em Fortaleza. Bacharelou-se em Administração de Empresas. Elegeu-se vereador e posteriormente, deputado estadual e Prefeito de Fortaleza. Secretário de Cultura do Estado, no Governo de Tasso Jereissati e posteriormente, Presidente do Instituto de Previdência do Município de Fortaleza. Anos mais tarde (1999), presidente da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza. Atualmente, é Presidente da Fundação de Esporte, Cultura e Turismo de Maracanaú. Na condição de educador, fundou o Colégio Oliveira Paiva. No campo literário, publicou os livros de poesias: Planisfério – Imprensa Universitária – 1969; Natal de Barro Lunar e Quatro Figuras no Céu-Edições Projeto– 1970; Circo Encantado – Gráfica Editorial Cearense; Natal do Castelo Azul – 1986; Pedras do Arco-íris ou a Invenção do Azul no Edital do Rio – 1998 e Planisfério – 2a. edição -2001; Mundica, Mulata do Cais (contos ) – Coleção Contar – 2002 – Teresina – PI; A Viúva do Vestido Encarnado (contos) 2002 – Editora Record. Carta do Pássaro (poesia)- Record.
Tem inéditos: ,Araçás do Mestre Rosa (contos),Os Corredores do Coronel Zeca Belarmino (novela).
Membro da Academia Cearense de Letras, (cadeira 14), Academia de Retórica (cadeira 28), sócio emérito da Academia de Letras Municipais (2002), acadêmico titular da cadeira nº 34 da Academia Fortalezense de Letras; membro da Academia de Ciências, Letras e Artes do Rio de Janeiro; integrante do Grupo SIN de Literatura; Integrante do Grupo Poesia Plural.
Integrante da Antologia de Contistas Novos do Brasil, organizada pelo escritor Moacir C. Lopes – Instituto Nacional do Livro.
Integrante da Antologia de Poesia do Século XX
Premiado no momento do Concurso de Poesia Norte e Nordeste, patrocinada pela Universidade Federal de Sergipe
Premiado por ocasião do Concurso Literário de Fortaleza, na categoria conto, promovido pela Fundação Cultural de Fortaleza (1997)
Menção Honrosa pelos relevantes serviços prestados como membro da Comissão Julgadora do Concurso Literário “Conhecendo o Parlamento”, promovido pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará.
Orador convidado pelo Instituto Antropológico e Geográfico do Ceará, por ocasião do Dia da Cultura e da Ciência –1999.
Crítica de Dias da Silva sobre "A Viúva do Vestido Encarnado"
A VIÚVA DO VESTIDO ENCARNADO
Dias da Silva
A Editora Record, em bom momento oportuno, traz ao público - é um livro de leitura indispensável - de Barros Pinho, dezesseis contos encimados do título A Viúva do Vestido Encarnado, que é o último texto que dá nome ao livro. São cento e vinte páginas de histórias - delas curtas e rápidas; delas mais alongadas, todas soltas e dinâmicas, que se lêem de uma assentada, pois o sabor da leitura e a curiosidade crescendo não deixam, de verdade, o leitor parar no meio do caminho para continuar no dia seguinte. São histórias cujos enredos se vão contando, espontaneamente, a quem não teve ainda como folheá-las só. Não há como guardá-las só pra gente. O leitor realmente, não consegue esconder o entusiasmo. Pela maneira de descrever a realidade corriqueira. Barros Pinho nisso se faz um mestre.
Os personagens _ Seu Eugênio, Zeferino, Zeca do Bonário, Mundica, Juca Rouxinol, Josefa da neblina, o Cego Beluz, Zelino da Serra, Salomão, a Viúva do Vestido Encarnado _ todos parece que têm vida, que se bolem. Que se fotografam. Se revelando. Conversando. É verdade: são pessoas vivas, presentes, de tão concebidas e fotografadas por palavras, com tal espontaneidade e originalidade.
" O conto é uma peça una. Esse processo que se usa ainda de abrir espaços como divisão de capítulos, é para novela e romance. O Conto é um tiro só: vupt, e pronto. Tudo o mais vai no implícito".
Outro teórico vem e diz: " o conto tem na brevidade a característica principal, decorrente da concentração dos recursos expressivos, em torno de um único efeito." E compreensões outras do conto. Ângulos mais sob o que é visto o conto. E a polêmica não para por aí. Sem qualquer conclusão. Para alguns críticos e teóricos, se o texto não se enquadra nessas medidas criadas em gabinete e laboratório de língua, se se quebram essas amarras, não se tem o conto. Ora não é. O que acontece é que, em face de tanta teorização, acaba-se por embrulhar o leitor. Barros não estruturou os 16 contos pensando nesta ou naquela teoria.
Estou que o certo mesmo é escrever o texto sem qualquer assédio de teorias que só emperram. Que só atrapalham. Que só complicam. Há teorias ( e críticas por aí em fora) que só embaralham o leitor, levando-o para longe do livro.
O autor de Planisfério escreveu A Viúva do Vestido Encarnado bem livre e espontaneamente. Bem longe de cânones e regras restritivas. Sem definições de contos por partes. Não escreveu dezesseis contos para teóricos ou para alimentar polêmica acerca de conto. Escreveu histórias para o povo ler. Ler e guardar o retrato dos personagens. Conto é isto _ longo, breve, de único efeito _ conto é o que se lê e logo se vai contando a outrem.
Barros Pinho desdiz a linguagem popular, sertaneja, para dizer de novo a mesma coisa de outra maneira também natural e espontânea. " A gente corre a vista nele e enxerga respeito da cabeça aos pés" _ para dizer que Seu Eugênio é um homem sério e honesto. (Hoje se cansa a vista para se encontrar um homem honesto...); "... dei de botar pernas no mundo" _ para dizer que Zeca é um andarilho; "... deixou abrir vereda no corpo, sem dar sabença das oiças do noivo bom de chegar" _ para dizer que Maria não era mais virgem e o noivo não sabia; "... Mexer sem licença de padre no altar..." _ para dizer o mesmo que fazer o mal à moça antes do casamento. E assim vai por todo o livro. Ao longo dos dezesseis contos. É assim a linguagem de Barros Pinho: curiosa, atraente, original, muito pessoal. E nisto é que consiste a originalidade: dizer o já dito de outra maneira. Saber reescrever coisas já escritas. Por que não há nada de novo no debaixo do sol. Originalidade não é criar _ que pé tirar do nada _ senão recriar. Criar de outra forma do já criado.
Pois é: o autor de Circo Encarnado recria, reinventa a linguagem popular do homem rude do campo, com formas pessoais de dizer, nas comparações com o aproveitamento de elementos da natureza: "... parecia ave de pena em poleiro limpo"; " A terra é uma asa de anum escuro voando pro céu"; "...ligeiros como relâmpago". Muito bem. As páginas de A Viúva do Vestido Encarnado estão recheadas de expressões assim. Outro recurso expressivo de Barros Pinho é a recorrência constante à substantivação de formas verbais, de advérbios e de nomes, carregando assim a linguagem de força e contundência.
Entretanto o que chama a atenção do leitor é que Barros Pinho consegue fazer o milagre da convivência do popular e vulgar com a correção e o padrão, sem qualquer percepção de algo trabalhado intencionalmente. A frase lhe cai da pena como da língua do homem rústico do campo, de tão dinâmica e natural. É o casamento espontâneo do popular com o correto sem artificialismo. Até na estrutura do diálogo tem originalidade. Às vezes mesmo sem o sinal convencional do diálogo direto (...), o leitor percebe a conversa entre personagens.
Não consigo resistir à transcrição das primeiras frases de alguns contos: são um convite irresistível à leitura do texto inteiro. Do primeiro conto: " A palmeira do buriti alonga-se num verde justaposto ao vento", do terceiro: " As manhãs trazem o sol no ventre"; em outro momento desse conto disse: " os dias eram uma gulodice comendo o tempo".
O estilo em A Viúva do Vestido Encarnado é resultante, de fato, do temperamento intelectual e moral do modo de ver e compreender, o que tem o autor, realmente, de mais íntimo e individual. É Barros Pinho se recordando, no impulso da melhor saudade, como em toda sua obra. A linguagem é curiosa. Leve. De frase curta. Que parece que tem música. De palavra usual revitalizada. De páginas recheadas de frases nominais carregadas de expressividade e contundência.
Barros Pinho é um intelectual que não vira as costas à democratização da linguagem e à popularização do estilo _ sem perder a correção _ preferindo dirigir-se ao povo a escrever para um grupo reduzido que escolhe falar somente com colegas deixando de fora a população.
A leitura de A Viúva do Vestido Encarnado não cansa, suscita entusiasmo e aguça a curiosidade do leitor. Não deixe de levar essa indumentária para sua estante: além de feita pra você, está na moda...
Dias da Silva
A Editora Record, em bom momento oportuno, traz ao público - é um livro de leitura indispensável - de Barros Pinho, dezesseis contos encimados do título A Viúva do Vestido Encarnado, que é o último texto que dá nome ao livro. São cento e vinte páginas de histórias - delas curtas e rápidas; delas mais alongadas, todas soltas e dinâmicas, que se lêem de uma assentada, pois o sabor da leitura e a curiosidade crescendo não deixam, de verdade, o leitor parar no meio do caminho para continuar no dia seguinte. São histórias cujos enredos se vão contando, espontaneamente, a quem não teve ainda como folheá-las só. Não há como guardá-las só pra gente. O leitor realmente, não consegue esconder o entusiasmo. Pela maneira de descrever a realidade corriqueira. Barros Pinho nisso se faz um mestre.
Os personagens _ Seu Eugênio, Zeferino, Zeca do Bonário, Mundica, Juca Rouxinol, Josefa da neblina, o Cego Beluz, Zelino da Serra, Salomão, a Viúva do Vestido Encarnado _ todos parece que têm vida, que se bolem. Que se fotografam. Se revelando. Conversando. É verdade: são pessoas vivas, presentes, de tão concebidas e fotografadas por palavras, com tal espontaneidade e originalidade.
" O conto é uma peça una. Esse processo que se usa ainda de abrir espaços como divisão de capítulos, é para novela e romance. O Conto é um tiro só: vupt, e pronto. Tudo o mais vai no implícito".
Outro teórico vem e diz: " o conto tem na brevidade a característica principal, decorrente da concentração dos recursos expressivos, em torno de um único efeito." E compreensões outras do conto. Ângulos mais sob o que é visto o conto. E a polêmica não para por aí. Sem qualquer conclusão. Para alguns críticos e teóricos, se o texto não se enquadra nessas medidas criadas em gabinete e laboratório de língua, se se quebram essas amarras, não se tem o conto. Ora não é. O que acontece é que, em face de tanta teorização, acaba-se por embrulhar o leitor. Barros não estruturou os 16 contos pensando nesta ou naquela teoria.
Estou que o certo mesmo é escrever o texto sem qualquer assédio de teorias que só emperram. Que só atrapalham. Que só complicam. Há teorias ( e críticas por aí em fora) que só embaralham o leitor, levando-o para longe do livro.
O autor de Planisfério escreveu A Viúva do Vestido Encarnado bem livre e espontaneamente. Bem longe de cânones e regras restritivas. Sem definições de contos por partes. Não escreveu dezesseis contos para teóricos ou para alimentar polêmica acerca de conto. Escreveu histórias para o povo ler. Ler e guardar o retrato dos personagens. Conto é isto _ longo, breve, de único efeito _ conto é o que se lê e logo se vai contando a outrem.
Barros Pinho desdiz a linguagem popular, sertaneja, para dizer de novo a mesma coisa de outra maneira também natural e espontânea. " A gente corre a vista nele e enxerga respeito da cabeça aos pés" _ para dizer que Seu Eugênio é um homem sério e honesto. (Hoje se cansa a vista para se encontrar um homem honesto...); "... dei de botar pernas no mundo" _ para dizer que Zeca é um andarilho; "... deixou abrir vereda no corpo, sem dar sabença das oiças do noivo bom de chegar" _ para dizer que Maria não era mais virgem e o noivo não sabia; "... Mexer sem licença de padre no altar..." _ para dizer o mesmo que fazer o mal à moça antes do casamento. E assim vai por todo o livro. Ao longo dos dezesseis contos. É assim a linguagem de Barros Pinho: curiosa, atraente, original, muito pessoal. E nisto é que consiste a originalidade: dizer o já dito de outra maneira. Saber reescrever coisas já escritas. Por que não há nada de novo no debaixo do sol. Originalidade não é criar _ que pé tirar do nada _ senão recriar. Criar de outra forma do já criado.
Pois é: o autor de Circo Encarnado recria, reinventa a linguagem popular do homem rude do campo, com formas pessoais de dizer, nas comparações com o aproveitamento de elementos da natureza: "... parecia ave de pena em poleiro limpo"; " A terra é uma asa de anum escuro voando pro céu"; "...ligeiros como relâmpago". Muito bem. As páginas de A Viúva do Vestido Encarnado estão recheadas de expressões assim. Outro recurso expressivo de Barros Pinho é a recorrência constante à substantivação de formas verbais, de advérbios e de nomes, carregando assim a linguagem de força e contundência.
Entretanto o que chama a atenção do leitor é que Barros Pinho consegue fazer o milagre da convivência do popular e vulgar com a correção e o padrão, sem qualquer percepção de algo trabalhado intencionalmente. A frase lhe cai da pena como da língua do homem rústico do campo, de tão dinâmica e natural. É o casamento espontâneo do popular com o correto sem artificialismo. Até na estrutura do diálogo tem originalidade. Às vezes mesmo sem o sinal convencional do diálogo direto (...), o leitor percebe a conversa entre personagens.
Não consigo resistir à transcrição das primeiras frases de alguns contos: são um convite irresistível à leitura do texto inteiro. Do primeiro conto: " A palmeira do buriti alonga-se num verde justaposto ao vento", do terceiro: " As manhãs trazem o sol no ventre"; em outro momento desse conto disse: " os dias eram uma gulodice comendo o tempo".
O estilo em A Viúva do Vestido Encarnado é resultante, de fato, do temperamento intelectual e moral do modo de ver e compreender, o que tem o autor, realmente, de mais íntimo e individual. É Barros Pinho se recordando, no impulso da melhor saudade, como em toda sua obra. A linguagem é curiosa. Leve. De frase curta. Que parece que tem música. De palavra usual revitalizada. De páginas recheadas de frases nominais carregadas de expressividade e contundência.
Barros Pinho é um intelectual que não vira as costas à democratização da linguagem e à popularização do estilo _ sem perder a correção _ preferindo dirigir-se ao povo a escrever para um grupo reduzido que escolhe falar somente com colegas deixando de fora a população.
A leitura de A Viúva do Vestido Encarnado não cansa, suscita entusiasmo e aguça a curiosidade do leitor. Não deixe de levar essa indumentária para sua estante: além de feita pra você, está na moda...
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